O livro Leave Me Alone and I’ll Make You Rich: How the Bourgeois Deal Enriched the World (Deixe-me em paz e eu enriquecerei você: como o Acordo da Burguesia tornou o mundo mais rico), escrito por Deirdre N. McCloskey e Art Carden, é um notável esforço para explicar aquele que é um dos mais impressionantes e misteriosos fatos da história do mundo.
Até o ano 1800, praticamente todos os indivíduos viviam na mais abjeta pobreza. E então, como que por milagre, a partir do ano 1800, começou a haver um rápido e intenso aumento no padrão de vida médio ao redor do mundo.
Este famoso gráfico em forma de “bastão de hockey”, do projeto Our World in Data, sobre a prosperidade humana, mostra esse fenômeno por meio da evolução do PIB real per capita para vários países e para o mundo, desde o ano 1.000.
Gráfico 1: evolução do PIB real per capita para vários países e para o mundo, desde o ano 1.000
Até então, nunca havia sido apresentada uma teoria definitiva sobre este fenômeno.
Os autores rotulam esta súbita reviravolta de O Grande Enriquecimento. “O Enriquecimento foi realmente muito muito ‘grande’: três mil por cento por pessoa”.
Os autores apresentam uma tese original. Segundo eles, “Foi a liberdade humana — e não a coerção, ou os investimentos ou mesmo a própria ciência — o que possibilitou o Grande Enriquecimento, de 1800 até hoje”.
O livro é um condensado, feito por Carden, de três amplos volumes escritos por McCloskey (veja o primeiro, o segundo e o terceiro volumes). McCloskey é uma das principais historiadoras econômicas do mundo, especialmente conhecida por sua notável obra sobre a economia britânica do século XIX.
O melhor do livro está nas refutações a várias teorias já apresentadas para este Grande Enriquecimento.
De acordo com o marxismo, o capitalismo surgiu e se expandiu por meio do esbulho e da escravidão. McCloskey e Carden rebatem com esta devastadora objeção:
A exploração imperialista foi a ação menos original que os europeus fizeram após 1492. Escravidão e impérios já eram coisas corriqueiras e comuns à época; no entanto, nunca haviam produzido nenhum Grande Enriquecimento. O comércio de escravos ao longo da costa leste da África, que enviava escravos negros para os mercados do Cairo e de Constantinopla/Istambul, era tão amplo quanto o da costa oeste. … E, ainda assim, o comércio oriental não tornou o Egito ou os Impérios Otomano e Bizantino ricos. Não houve nada nem sequer minimamente comparável ao que ocorreu com o Grande Enriquecimento. (p.85)
Os autores reiteram este ponto vital em outra passagem essencial:
O que estamos dizendo, para sermos bem precisos, é que guerras, escravidão, imperialismo e colonialismo foram, como um todo, medidas economicamente estúpidas.
Suponha que matar pessoas, confiscar suas propriedades e estabelecer impérios sejam medidas capazes de criar uma “acumulação de capital original”, a qual irá gerar o “modo capitalista de produção”, e consequentemente criar um Grande Enriquecimento. Se fosse assim, […] tudo já teria acontecido há muito tempo, e não ocorreria apenas no noroeste da Europa. Imperialismo não é e nem nunca foi uma ideia nova. (pp. 118-19)
Se o imperialismo não criou o capitalismo, tampouco ele o sustentou.
O economista Lance Davis e o historiador Robert Huttenbach já demonstraram há muito tempo, e de maneira decisiva, que mesmo o tão alardeado Império Britânico […] representou um fardo sobre a renda britânica. Benjamin Disraeli, antes de sua conversão ao imperialismo em 1872, havia reclamado, em 1852, que “essas colônias miseráveis e desgraçadas … são uma pedra em volta de nosso pescoço”. Ele estava certo em 1852 e errado em 1872. (p.85)
O que, então, criou o Grande Enriquecimento?
McCloskey e Carden afirmam que foi o surgimento de novas ideias.
Estamos argumentando … que os britânicos enriqueceram — e em seguida os Ocidentais e então boa parte do resto do mundo, e todos os humanos nas gerações seguintes — por causa de uma mudança na ética, na retórica e na ideologia. […]
Lucros rotineiros ou o contínuo esbulho de terceiros não podem tornar todo o mundo mais rico. Tem de haver algo diferente. No caso, o surgimento de uma nova ideia que eleve a recompensa de todos. E tem de haver milhares de novas ideias.
Estamos afirmando que a fonte desta revolução foi a então inédita “permissão para se ter uma chance”, a qual foi inspirado naquela até então espantosa novidade ética, retórica e ideológica: o liberalismo. Dê às pessoas comuns o direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade — contra a antiga e vigente tirania — e elas começarão a pensar em todos os tipos de novas ideias. […]
Neste novo liberalismo, as pessoas começaram a conversar entre si de maneira distinta. Igualdade de iniciativa, de permissão e de direitos legais passou a ser a nova teoria, em oposição à hierarquia que vigorou em todos os períodos anteriores (pp.86-87).
Em termos simplificados, os autores argumentam que houve uma mudança radical na mentalidade das pessoas. Houve uma mudança na atitude das pessoas em relação ao empreendedorismo, ao sucesso empresarial e à riqueza em geral.
O Acordo da Burguesia
Em termos sucintos, eis o cerne da teoria do livro.
Antes desta mudança no modo de pensar, havia honra em apenas duas opções: ser soldado ou ser sacerdote. A honra estava apenas em estar ou no castelo ou na igreja. As pessoas que meramente compravam e revendiam coisas para sobreviver, ou mesmo as que inovavam, eram desprezadas e escarnecidas como trapaceiras pecaminosas.
E então algo mudou. Primeiro na Holanda, quando a população se revoltou contra o controle espanhol do país. Depois na Inglaterra, com sua revolução, a qual é considerada a primeira revolução burguesa da história.
As revoluções e reformas da Europa, de 1517 a 1789, deram voz a pessoas comuns fora das hierarquias de bispos e aristocratas. As pessoas passaram a admirar empreendedores. A classe média, a burguesia, passou a ser vista como boa e ganhou a autorização para enriquecer.
De certa forma, as pessoas assinaram o ‘Acordo da Burguesia’, o qual se tornou uma característica dos lugares que hoje são ricos, como a Inglaterra, a Suécia ou Hong Kong: “Deixe-me inovar e ganhar dinheiro no curto prazo como resultado dessa inovação; e então, eu o tornarei rico no longo prazo”.
E foi isso que aconteceu. Começou no século XVIII com o pára-raios de Franklin e a máquina a vapor de James Watt. Isso foi expandido, nos anos 1820 (século XIX), para uma nova invenção: as ferrovias com locomotivas a vapor. E então vieram as estradas macadamizadas criadas pelo engenheiro escocês John Loudon McAdam. Depois surgiram as ceifadeiras, criadas por Cyrus McCormick, e as siderúrgicas, criadas por Andrew Carnegie.
Tudo se intensificaria ainda mais no restante do século XIX e aceleraria fortemente no início do século XX. Consequentemente, o Ocidente, que durante séculos havia ficado atrás da China e da civilização islâmica, se tornou incrivelmente inovador. As pessoas simplesmente passaram a ver com bons olhos a economia de mercado e a destruição criativa gerada por suas lucrativas e rápidas inovações.
Deu-se dignidade e liberdade à classe média pela primeira vez na história da humanidade e esse foi o resultado: o motor a vapor, o tear têxtil automático, a linha de montagem, a orquestra sinfônica, a ferrovia, a empresa, o abolicionismo, a imprensa a vapor, o papel barato, a alfabetização universal, o aço barato, a placa de vidro barata, a universidade moderna, o jornal moderno, a água limpa, o concreto armado, os direitos das mulheres, a luz elétrica, o elevador, o automóvel, o petróleo, as férias, o plástico, meio milhão de novos livros em inglês por ano, o milho híbrido, a penicilina, o avião, o ar urbano limpo, direitos civis, o transplante cardíaco e o computador.
O resultado foi que, pela primeira vez na história, as pessoas comuns e, especialmente os mais pobres, tiveram sua vida melhorada.
Nada disso pode ser explicado pela exploração de escravos ou de trabalhadores. Tampouco pelo imperialismo. Os números são grandes demais para ser explicados por um roubo de soma zero.
Também não foram, argumentam os autores, os investimentos ou mesmo as instituições já existentes. Os autores reconhecem que é necessário ter capital e instituições para implantar e incorporar as idéias; mas capital e instituições são causas intermediárias e dependentes, e não a raiz. Idéias sobre a dignidade humana e a liberdade foram as grandes responsáveis. O mundo moderno surgiu quando se começou a tratar as pessoas com mais respeito, concedendo a elas mais liberdade.
O que causou o Grande Enriquecimento, portanto, foi uma mera mudança de mentalidade, uma mera mudança de atitude. Em uma palavra, foi o liberalismo. Dê às massas de pessoas comuns igualdade perante a lei e igualdade de dignidade social, e então deixe-as em paz. Faça isso e elas se tornam extraordinariamente criativas e energéticas.
A ideia liberal, segundo os autores, foi gerada por uma feliz coincidência de acontecimentos no noroeste europeu de 1517 a 1789: a Reforma, a Revolta Holandesa, as revoluções na Inglaterra e na França, e a proliferação da leitura. Estes acontecimentos, conjuntamente, libertaram as pessoas comuns, dentre elas a burguesia e sua livre iniciativa.
Em termos sucintos, segundo os autores, o Acordo da Burguesia é este: primeiramente, deixe-me tentar este ou aquele aprimoramento. Ficarei com os lucros. Em um segundo ato, no entanto, estes lucros servirão de chamariz para aqueles importunos concorrentes, os quais irão também entrar no mercado, aumentar a oferta de bens e serviços, pegar parte da minha clientela e, consequentemente, erodir esses meus lucros. Já no terceiro ato, após todos os aprimoramentos e melhorias que criei terem se espalhado, eles farão com que você melhore de vida substantivamente e fique rico.
Possíveis objeções
Há muita coisa condensada em tudo isso, mas a teoria de McCloskey parece ainda aberta a objeções. Ou, no mínimo, a qualificações.
Como os autores corretamente observam, o Grande Enriquecimento se espalhou por todo o mundo, inclusive para a China, mas o alto crescimento econômico naquele país não foi acompanhado de liberalismo político. E isto não é meramente uma questão de a inércia do passado ser incapaz de acompanhar a teoria professada naquele país pelos defensores de reformas pró-mercado. Ao contrário: aqueles que abriram a economia chinesa jamais renunciaram à ditadura do Partido Comunista.
Mesmo quando aplicada ao exemplo-modelo da Grã-Bretanha, a teoria de McCloskey tem de ser modificada. Será que os liberais clássicos britânicos reivindicaram ter o mesmo status legal da Coroa e da aristocracia? É fato que eles afirmaram possuir direitos legais que a Coroa não poderia abolir, mas, com algumas exceções, eles não foram tão longe ao ponto de reivindicar a posição que McCloskey atribui a eles.
Se, no entanto, não podemos aceitar completamente a teoria de McCloskey, temos de reconhecer seus consideráveis méritos, os quais são baseados em seu profundo conhecimento de história econômica. Infelizmente, isso não é o bastante para ela, de modo que ela se aventura em disciplinas como a história do pensamento político, na qual ela demonstra uma postura menos segura do que a que exibe na história econômica.
Ela afirma que
a visão, em 1651, do filósofo inglês Thomas Hobbes era a de que sem um rei todo-poderoso, haveria uma guerra de “todos contra todos”. Falso. Não mesmo. Hobbes suponha que, quando as pessoas são deixadas em paz, tendo de se virar por conta própria, elas se tornam cruéis, egoístas e incapazes de se auto-organizarem voluntariamente. Para domá-las, seria necessário haver um ‘Leviatã’, como ele o rotulou no título de sua obra de 1651 — ou seja, uma grande besta chamada governo. Somente um rei com mãos de ferro seria capaz de manter a paz e proteger a civilização. (pp. 3-4)
Contrariamente ao que ela aqui sugere, o estado da natureza, para Hobbes, é o de uma sociedade sem governo nenhum, e não o de uma sociedade sem um monarca absolutista.
Pessoas vivendo sob as monarquias limitadas da Idade Média — embora sua situação fosse insatisfatória para Hobbes — não estavam no estado da natureza.
Adicionalmente, embora realmente seja verdade que Hobbes preferisse uma monarquia às outras formas de governo, ele reconhecia outros tipos de governo como legítimos. E, embora isso ainda seja motivo de debate, ele parece ter aceitado o reinado de Cromwell após ter retornado à Inglaterra.
Sua abordagem sobre Rousseau é igualmente falha.
Ela afirma que Rousseau “imaginava que o direito de um indivíduo livre e digno de dizer ‘não’ pode ser sobrepujado por uma misteriosa ‘vontade geral’, a qual Rousseau, especialistas similares e burocratas do Partido Comunista seriam facilmente capazes de distinguir e impor a terceiros por meio de medidas coercitivas” (p. 180).
Embora McCloskey esteja correta em afirmar que Rousseau se opunha aos direitos individuais nos moldes defendidos pelos liberais clássicos, ela gravemente deturpou a ‘vontade geral’, a qual é estabelecida pelo voto popular sob determinadas condições, e não imposta por especialistas.
Em uma valiosa discussão, McCloskey afirma que “a palavra ‘honesto’ foi transferida de honra aristocrática para honra burguesa” (p. 149). Em seu sentido aristocrático, “honesto tinha o intuito de significar uma pessoa ‘digna e apta para estar no topo’, e a honestidade era uma questão de posição social. […] A moderna acepção da palavra honestidade para alguém ‘que diz a verdade e que mantém sua palavra’ aparece no inglês pela primeira vez em 1500, mas o significado “honorável por virtude de seu alto status social” domina seu uso até o século XVIII” (p. 150).
Este, repetindo, é um ponto válido, mas se a intenção era sugerir, como parece ser o caso, que os aristocratas de antes da era burguesa teriam se sentido livres para mentir em suas negociações diárias, já que fazê-lo não macularia sua honra, tal afirmação é extremamente dúbia. Os ensinamentos da Igreja, explicados por Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, eram o de que mentir era absolutamente proibido.
Para concluir
Em Leave Me Alone and I’ll Make You Rich, McCloskey e Carden nos ajudam a entender o Grande Enriquecimento, um fato central na história do mundo. Eles corretamente enfatizam a importância que as ideias sobre liberdade e livre mercado tiveram em permitir e estimular esse desenvolvimento. E eles decisivamente refutam mitos marxistas e demais sobre a história econômica.
Em minhas breves considerações acima, aventurei-me em fazer algumas poucas críticas ao livro. Ao final, não posso reclamar: eu os deixei em paz, e eles me tornaram mais rico (em conhecimento).
Fonte: Mises Brasil